sábado, 15 de julho de 2017

O primeiro tiro da guerra foi uma lança

INTERNACIONAL
16.09.2015 às 18h59
LUÍS PEDRO NUNES ALFREDO CUNHA


As ruínas do antigo quartel português de Tite escondem uma história que está, hoje em dia, mal contada. 
O primeiro tiro contra as forças portuguesas não foi, afinal, um tiro. 
As verdadeiras memórias daquele dia ainda estão por perto das ruínas. 
Elas e o "Grande Bazuqueiro"


23 DE JANEIRO DE 1963, QUARTEL DE TITE

É difícil explicar a geografia da Guiné a quem nunca lá foi. 
Afinal “aquilo tem o tamanho do Alentejo”. 
Mas é um engano. 
Todo o litoral é uma planície pantanosa que se abre à foz de vários rios. 
O que quer dizer que para descer o equivalente a 30 quilómetros em linha reta, teremos que utilizar um barco ou dar voltas por terra horas sem fim a contornar a boca de várias entradas de rios. 
E há o terreno de lama. 
A vegetação. 
O clima tropical. 
As chuvas. 
Os mosquitos. 
No início dos anos 60, a Guiné não era como as jóias da Coroa: Angola e Moçambique. Para o meio milhão de autóctones de dezenas de etnias, havia uns meros dois mil portugueses da Metrópole. 
Alguns deles militares, espalhados por quartéis nos principais pontos do país. 
A zona sul, que faz fronteira com Conacri, terrível em termos de geografia, e que seria comandada por Nino Vieira, iria ser o ponto de partida da guerra na Guiné. 
Tite, um quartel da tropa portuguesa, foi escolhido para a primeira investida noturna do PAIGC. 
É conhecido por ser o local do primeiro tiro. 
E ainda se comemora como tal. 
É uma data.




O quartel português de Tite ainda lá está. 
Mas em escombros. 
Restam as paredes e como sempre o mato vem reclamar o que lhe pertence. 
Ainda foi ocupado pela tropa guineense, mas abandonado em 1994. 
A poucos metros, impassível, está um poilão, uma magnífica árvore sagrada com dezenas de metros de altura. 
À sua sombra, os velhos. 
E, com eles, a memória. 
Logo ali dois que lutaram no exército português. 
Pedro Ussumani, 66 anos; e Brema Jasse, 73. 
Foram tropa feijão-verde. 
Brema, aliás, passou de soldado ‘tuga’ a coordenador do PAIGC, e fala desses tempos com cumplicidades e risadas. 
“Querem um terrorista? 
Vamos a casa do grande bazuqueiro”, e lá caminhamos umas dezenas de metros até à casa de Braine Sane, 63 anos, o tal artista da bazuca. 
Tudo amigo. 
“Fomos soldados, não há rancores”, diz.

Antigos combatentes da guerra pela independência da Guiné-Bissau


Ussumani vai adiantando “que depois das descolonizações há sempre uns exageros”. 
Mas a questão não era entre guineenses, era da política de Salazar. 
Gostava de acabar nesta frase. 
Não posso. 
Da mesma maneira que entre os jovens não há grande ligação com o poder colonial, há um saudosismo verbalizado sem medo na geração mais velha. 
Até em combatentes da libertação. 
Um cansaço da instabilidade. 
Da destruição. 
Da pobreza. 
Mais do que do resto. 
O que confunde. 
E ouve-se isto. 
“Se era para ficar assim, sem nada, com este braço sem força devido aos estilhaços, não tinha ido combater”, diz o bazuqueiro do PAIGC.

E o tal primeiro tiro, como foi? 
O homem que o deu morreu há poucos meses. 
E eis que chega à sombra do poilão Pape Dabo, 89 anos, um homem pequenino. 
Não sabe de ouvir dizer. 
Esteve presente no ataque de 23 de janeiro de 1963 e participou nas reuniões que decidiram a operação no quartel de Tite. 
Tiro? 
Não foi tiro. 
“Só tínhamos dez armas e a sentinela estava a dormir e, quando avançámos pela porta do quartel, matámos o homem com um canhaco.” 
Canhaco? 
É uma lança que se põe num arco. 
Mas foi com a mão. 
Perfurou-lhe o pescoço.


Mas voltemos um pouco atrás. 
Pape Dabo conta a história do ataque como já a terá repetido centenas de vezes. 
Não permite interrupções. 
Ele é o narrador e o dono da versão. 
Começa com ele e o irmão no quartel, a trabalharem como padeiros dos portugueses, e termina depois do ataque com ele a voltar a ser reconhecido pelos militares portugueses como um “dos bons” e, assim, a poder espiar. 
Pelo meio, o ataque: divididos em quatro grupos, só o primeiro entra no quartel; os portugueses acordam; os tiros; as mortes do lado dos ‘tugas’ terroristas (“terroristas eram vocês do PAIGC”, diz Pedro); depois, teve que voltar no outro dia, foi obrigado a ver os cadáver dos companheiros mortos e ter de fingir que não os conhecia. 
E recorda ainda quando o comandante alinhou a população na praça em frente ao quartel e disse: “A guerra começou.”

terça-feira, 16 de maio de 2017

O massacre de Pidjiguiti e o cão do administrador Carreira

Luís Pedro Nunes e Alfredo Cunha
15.09.2015 às 16h32

De como a morte do cão do administrador do Porto de Bissau foi um dos acontecimentos que originou um dos massacres mais negros da história da Guiné, e o início de um processo histórico que iria acabar na independência

3 DE AGOSTO DE 1959, PORTO BISSAU
Pode um cão mudar o curso da história? 
A versão oficial reza assim. 
A 3 de agosto de 1959, os marinheiros e estivadores do Porto de Bissau, ao serviço da então poderosa Casa Gouveia, revoltaram-se e exigiram melhores condições de trabalho e um aumento da jorna. 
Foi aí que o poder colonial português mostrou que não estava para ser intimidado. 
Dá-se o massacre de 3 de agosto, em que polícias, cabo do mar e outras forças que se armaram no momento disparam sobre os homens que reivindicavam apenas um pouco mais de dignidade. 
O resultado foi desastroso. 
Um número de mortos que nunca chegou bem a ser contabilizado (40 ou 70). 
E que acelerou e modificou qualquer pretensão de moderação dos jovens quadros que estavam a formar a resistência organizada ao poder colonial. 
Ficou claro que Salazar nunca iria aceitar uma autonomia administrativa. 
Era preciso dar início à luta armada. 
Era preciso sair dos centros urbanos controlados pelos portugueses. 
Era preciso formar e armar uma guerrilha. 
Nascia assim o PAIGC — Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde — que agregou várias tendências. 
E o cão? 
Onde entra ele?

Em setembro de 2015, uns 55 anos depois desse dia que continua a ser celebrado na Guiné, ainda é possível juntar uma dúzia de sobreviventes do massacre de Pidjiguiti e levá-los ao Porto de Bissau. 
São velhotes tristes e desencantados com a vida, abandonados e sem grande sustento. 
E Porto de Bissau é um cadáver já decomposto. 
À entrada, há uma bizarra escultura em blocos. 
Só depois se percebe que é uma mão fechada, em honra dos mortos em Pidjiguiti. 
Chama-se “Mão de Timba” — mão de caloteiro.

"A mão de Timba", escultura à entrada do Porto de Bissau. ALFREDO CUNHA

É aqui que começa uma versão um pouco diferente da história de Pidjiguiti, contada pelos próprios, no local. 
O mais dramático — se é que se pode utilizar este termo — é que as reivindicações dos estivadores e marinheiros já tinham sido aceites pela Casa Gouveia em 3 de agosto, dia do massacre. 
Quem o diz é, por exemplo, o coronel Carlos Fabião, em várias entrevistas. 
Mas o administrador achou que só iria dar seguimento a essa ordem quando lhe apetecesse.
Sobreviventes do massacre de Pidjiguiti. ALFREDO CUNHA

Para os velhos marinheiros com quem falámos a motivação era evidente: vingança. 
O administrador Carreira não perdoava terem-lhe matado um cão. 
Esta versão que nos conta Estêvão Vieira, de 70 anos, tem a concordância de todos.
“O administrador tinha dois cães enormes que largava pelo porto às seis da tarde para não deixar ninguém andar por aí. 
Um marinheiro foi apanhado e, ao defender-se, matou um. 
O administrador prometeu vingar-se. 
Até se mudou para esta casa aqui mais perto.” 
A morte do cão tinha iniciado um processo histórico imparável, que iria acabar na independência da Guiné.



De todos os relatos gravados e lidos, nunca se percebe muito bem qual foi a acendalha que levou ao primeiro tiro. 
Cabe aos velhos estivadores contarem. 
Eles garantem que o cabo do mar Nicolau se assustou quando o marinheiro Augusto agarrou num barrote para se sentar. 
Julgou que o ia atirar contra ele. 
E disparou. 
Eram 15h45. 
Durou até às 18h. 
E a Guiné mudou.


O PAIGC já teve várias versões sobre a sua intervenção na génese deste movimento. 
A verdade é que foi apenas mais tarde, em setembro, que se organizou. 
Carlos Correia, um destacado membro do partido, primeiro-ministro da Guiné e várias vezes ministro dos Negócios Estrangeiros, era funcionário da Casa Gouveia. 
Desdramatiza um pouco o papel de ‘mau’ do administrador Carreira, até porque ele foi sua testemunha moral quando esteve preso. 
Mas não deixa de ter sido irónico ter-se encontrado várias vezes com o filho, Medina Carreira, enquanto homólogo nos Negócios Estrangeiros portugueses. 
“Ele é guineense, não tem culpa do que o pai fez.” 
E continua: “Só foi desagradável uma vez, quando eu o confundi e disse que ele era ministro do PSD.” 
A Guiné independente nasceu ali, naqueles escombros, agora um misto de ferrugem e de lama.

Os fantasmas da Guiné

Luís Pedro Nunes, João Roberto e João Santos Duarte
16.09.2015 às 18h59


Do massacre de Pidjiguiti ao primeiro ataque a um quartel português, do fuzileiro esquecido nas margens do rio Corubal ao primeiro míssil que mudou a face da guerra ou à operação “Mar Verde”. 
O Expresso percorreu o país à procura das histórias que resistiram à passagem do tempo. 
Veja a animação para perceber os locais e as datas dos acontecimentos a que se refere a primeira parte da reportagem

Um 'fuzo' esquecido junto aos mortos do Corubal

LUÍS PEDRO NUNES  e   ALFREDO CUNHA
16.09.2015 às 18h59
Há quase meio século que um homem espera sentado numa canoa na margem do rio Corubal. 
Não tem nada. 
Apenas a mágoa de ter sido abandonado, uma revista antiga e um velho cartão de combatente. 
Espera pelos antigos companheiros que o venham buscar, junto às águas que servem de cemitério para dezenas de portugueses



5 DE FEVEREIRO DE 1969, CHECHE
Aquele rio parece calmo. 
Mas tem mortos e vivos que querem ser levados para cá. 
Em fevereiro de 1969, nove meses após ter sido nomeado governador militar da Guiné, Spínola manda retirar de Madina do Boé. 
Era um esforço militar inútil. 
Um quartel isolado a sul de Nova Lamego (hoje, Gabu), cortado por um rio, constantemente fustigado pelo PAIGC, colado à fronteira com Conacri. 
Essa pequena língua de terra não valia o esforço militar. 
Mas a travessia do rio Corubal iria ficar associada a uma das maiores tragédias militares portuguesas. 
E Madina do Boé seria o local onde se proclamaria unilateralmente a independência, em 1973.

Ainda hoje é uma longa e penosa viagem até à passagem do rio Corubal. 
De Bissau aponta-se a Leste até Gabu e é tudo alcatrão. 
Umas horas de viagem. 
Depois, em pista de terra vermelha, vira-se a sul de Conacri para Cheche. 
Queríamos chegar a Madina do Boé. 
Mais precisamente ao antigo quartel e ao monumento da independência que lá dizem existir. 
Mas o Corubal não quis. 
Do lado de lá está a jangada que consegue transportar viaturas. 
Mas não atravessa porque o rio está cheio e a corrente forte de mais. 
Só em outubro. 
E o que atravessa? 
São canoas, escavadas a um tronco, com um remador. 
Levam até motorizadas, mulheres com bebés. 
É uma operação de risco. 
O remador avança furiosamente em direção a montante e é arrastado pela corrente até um ponto neutro. 
Depois desse ziguezague é preciso repetir a operação até conseguir chegar à margem de lá. 
Uns 200 metros.

É assim que se percebe o poder brutal da corrente do Corubal, que levou a vida a 47 militares portugueses na noite de 5 para 6 de fevereiro de 1969. 
A companhia de Caçadores 1790 já tinha percorrido os 30 quilómetros entre o quartel e a margem, com forte apoio aéreo para não ser atacada. 
O atravessamento do material militar e das viaturas foi feito exatamente com pirogas dessas, com lacas de madeira e um zebro de borracha a empurrar. 
Foram 28 viaturas pesadas, 100 toneladas de munições, três autometralhadoras e 500 homens. 
Já de madrugada, na última passagem, quando a jangada vinha carregada de homens, o comandante da operação decide mandar umas morteiradas para uns alegados locais do PAIGC. 
Os homens a meio do rio entram em pânico por não saberem de onde vem a fogachada. 
A barcaça começa a cuspir homens vestidos e carregados de munições. 
Morreram 47. 
A maioria ficou para sempre naquele rio. 
Alguns foram enterrados nas margens.

E, contudo, há ali um que espera que o venham buscar. 
Está sentado numa canoa. 
Aliás, disse-o logo: “Sou fuzileiro especial português Silai, curso NATO, quero ir para Portugal. 
Estou à espera que me venham buscar.” 
Esta é uma das muitas histórias que se misturam em remoinho na margem do rio Corubal. Não tem nada. 
Ou melhor, tem mágoa por ter sido abandonado pelos seus camaradas fuzileiros. 
Mostra uma revista “Combatente” já muito usada com uma foto de uma reunião de antigos ‘fuzos’ da Guiné: “Somos colegas.” 
Esteve fugido 20 anos para não ser morto. 
“Andei pelo Burkina Faso.” 
E o Burkina é muito longe.
E chegam outras pessoas que querem contar histórias. 
No início, nada. 
Agora saem como numa nascente de água, às golfadas. 
Sobre a morte dos portugueses. 
De como nos dias seguintes à tragédia apareceram uns helicópteros e não conseguiram levantar os corpos do rio, de como durante anos aparecerem malas e objetos...